As grandes transformações pelas quais o mundo vinha passando nas primeiras décadas deste século 21 foram potencializadas pelo contexto pandêmico. Se, antes, a digitalização era uma imposição da 4ª Revolução Industrial, agora a aposta é de que a recuperação socioeconômica do Brasil precisa ser construída com base em um novo modelo de desenvolvimento que concilie, além de tecnologia, fatores sociais, ambientais e econômicos.
Na esfera profissional, elementos como a inteligência artificial e os algoritmos substituirão diversas atividades rotineiras e não cognitivas, resultando em uma mudança no perfil nos postos de trabalho. “Isso não significa que vai acabar o emprego. O que está acontecendo é que será necessário requalificar muita gente que está no meio do percurso da sua vida profissional. Há um debate em torno disso em todo o mundo e no Brasil não será diferente”, explica o diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Rafael Lucchesi.
Levantamento realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que, em até 20 anos, 65% das atividades desenvolvidas pelas pessoas serão parcialmente ou totalmente automatizadas. Com isso, entre 3% e 14% dos empregos hoje existentes serão completamente extintos. Na outra ponta, contudo, o Fórum Econômico Mundial avalia que, até 2025, serão criados 97 milhões de empregos relacionados às transformações tecnológicas, sendo 1,7 milhão ainda em 2021 e outros 6,1 milhões até o ano que vem.
A virada de chave entre postos de trabalho fechados e o surgimento de novas vagas está diretamente relacionada ao novo perfil do profissional buscado pelo mercado de trabalho e às novas (e emergentes) pro fissões fundamentadas na digitalização de todos os setores da economia.
Além das profissões que surgiram nesse novo contexto, muitas outras que já existiam incorporaram termos – como “digital” ou “dados” – aos seus nomes, segundo o estudo Profissões Emergentes na Era Digital: Oportunidades e desafios na qualificação profissional para uma recuperação verde, realizado pela Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ – Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit GmbH) em parceria com o SENAI e com o Núcleo de Engenharia Organizacional (NEO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O relatório identifica tendências e pro fissões emergentes no curto (2 anos), médio (5 anos) e longo (10 anos) prazos em quatro grandes setores impactados pela digitalização: Software e Tecnologia da Informação (TI); Indústria de Transformação e Serviços Produtivos; Agricultura; e Saúde. Entre as ocupações de destaque estão a de programador, analista de segurança cibernética, expert em digitalização industrial, empreendedor digital, engenheiro agrônomo digital e engenheiro de dados da saúde.
Ao todo, foram identificadas 12 profissões emergentes no setor de Software e TI, 19 no de Transformação e Serviços, 8 no de Agricultura e 14 no setor de Saúde. Analisando a demanda em relação à formação profissional, o estudo constatou que as maio res lacunas percentuais estão na Agricultura, enquanto as maiores demandas nominais por novos trabalhadores digitais estão no setor de Transformação e Serviços.
A formação dessa mão de obra, contudo, ainda é um desafio. Na área de TI, por exemplo, a estimativa é de que, em 10 anos, sejam necessários 83 mil especialistas em segurança digital, mas a previsão é de que apenas 15,2 mil profissionais nessa área sejam formados até lá. Já na indústria de transformação e serviços produtivos, a expectativa para os próximos dois anos é de uma demanda de 401 mil profissionais ante os 106 mil que deverão estar disponíveis.
De acordo com o diretor do SENAI, a solução para essas lacunas passa pela correção do nosso sistema educacional. “Temos uma escola do século 20 e precisamos ter uma escola do século 21. Há todo um paco te de novas tecnologias que redefine o mundo do trabalho, e nossa matriz educacional precisa dialogar com ele”, diz Lucchesi.
Profissionalização
No Brasil, ainda é muito pequeno o contingente de jovens que fazem educação técnico-profissional: cerca de 11%. Para se ter uma ideia, entre os países que integram a OCDE, a média é de 41%, sendo que algumas nações atingem índices muito maiores, como a Finlândia (72%) e a Áustria (75%). O índice brasileiro é baixo, mesmo quando comparado com países vizinhos, como o Chile (16%) e a Colômbia (27%).
Para a professora da FGV-RJ e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), Claudia Costin, “é preocupante quando a educação acha que seu objetivo não é formar para o mundo do trabalho, mas formar para a vida, como se esta excluísse o trabalho”.
Ela ressalta que indivíduos que não são formados para o trabalho não são emancipados e que a educação precisa estar atenta às constantes transformações do mercado. “Quando um país se recupera de crises que geraram desemprego, não significa que as pessoas que estavam em pregadas voltam para suas antigas funções, porque muitas delas foram substituídas por inteligência artificial ou automação. É preciso preparar a juventude para as novas profissões”.
Para o sociólogo e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Simon Schwartzman, a estrutura educacional do Brasil não está preparada para atender a essa demanda. Será necessário que o setor produtivo trabalhe junto às instituições educacionais, públicas e privadas, para formar pessoas com tais competências. Dificilmente o setor educacional sozinho saberá como fazer isso, diz ele.
Novo ensino médio
Recentemente, o Ministério da Educação anunciou o cronograma de implementação do novo ensino médio, que contempla medidas como a ampliação da carga horária e uma nova estrutura curricular, com itinerários formativos por meio dos quais os estudantes podem se aprofundar em uma ou mais áreas de conhecimento e/ou na for mação técnica e profissional. Essa implementação ocorrerá de forma gradual, com início em 2022 para o primeiro ano do ensino médio, em 2023 para o segundo ano e em 2024 para o terceiro.
A medida, válida para todas as escolas públicas e particulares do país, tem como objetivo tornar o ensino médio mais atra ente para os jovens e, consequentemente, reduzir a evasão de estudantes nesse nível de ensino. Como explica Schwartzman, “a esperança é de que esse abandono seja reduzido ao tornar o ensino médio mais acessível e motivador do que os cursos tradicionais, e também mais prático, proporcionando uma perspectiva mais clara de profissionalização”.
O maior espaço conferido à profissionalização no novo ensino médio também é apontado como uma mudança positiva pelo diretor do SENAI, Rafael Lucchesi. Para ele, essa aproximação contribui para dar uma identidade social a todos os indivíduos. “O sistema anterior, academicista, era orientado como se todos os alunos do Brasil fossem para a universidade, enquanto apenas cerca de 20% dos jovens seguem estudando após o ensino médio. Os outros 80% vão para o mundo do trabalho sem nenhuma profissão”.
Além disso, como sintetiza Sergio Paulo Gallindo, presidente da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom), “estamos diante da geração imediatista dos millenials. Se eles não identificarem conexão entre a formação educacional e a vida deles, vão desistir e procurar outra coisa”.
Entraves
Além de reter os estudantes, especialistas alertam para outro desafio que precisa ser enfrentado pela educação profissional no Brasil: o preconceito. Segundo Claudia Costin, a discriminação contra a profissionalização é algo que vem de muito tempo e da nossa relação com o trabalho não estritamente intelectual.
“Trata-se de uma visão elitista e desconectada do mundo. No surgimento dos antigos liceus de artes e ofícios, dizia-se explicitamente que eram para a população pobre, para dotá-la de alguma profissionalização. Hoje, esse preconceito se sofisticou e o problema ocorre de duas formas: a ideia de que a profissionalização não faria sentido e a de que os cursos técnicos deveriam ser mais parecidos com o ensino médio regular, pois, como oferecem uma boa aprendizagem, podem servir como preparatórios para a educação superior”.
Para Claudia Costin, a solução passa pela valorização dos jovens que querem ter uma carreira técnica ou que pretendem seguir uma trajetória a partir dos conheci mentos adquiridos no curso técnico. “Uma alternativa seria fazer aqui algo parecido com o que a Coreia do Sul implementou. Lá, na região que seria o Vale do Silício deles, existe um ensino médio voltado para a tecnologia de ponta. Quem faz esse ensino técnico e fica três anos na área não precisa fazer o temido vestibular coreano para entrar nas engenharias correspondentes ao curso técnico frequentado”.
Destacar a perspectiva de trabalho e renda no curto prazo, criada pelo ensino técnico, é a aposta de Simon Schwartzman para combater o ainda baixo interesse dos brasileiros pela formação técnica. “Muitos não podem esperar 4 ou 5 anos para obter um título superior e só então entrar no mercado de trabalho. Além disso, a educação profissional não é um beco sem saída. As pessoas que optarem por uma formação profissional podem continuar se aperfeiçoando, inclusive no ensino superior, se assim desejarem”, pondera Schwartzman.
Tecnologia
Mesmo sendo uma área na qual os salários não param de crescer, assim como as ofertas de vagas, o setor de Software e TI está diante de uma situação difícil, pois prevê que, em 10 anos, algumas pro fissões emergentes vão apresentar déficits que chegam a 80% entre a demanda e a quantidade de profissionais qualificados disponíveis no mercado. Isso ocorre em um país que enfrenta sua maior crise de desemprego da história, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com 14,7% da população em idade para trabalhar desempregada.
Para o presidente da Brasscom, tanto a implementação do novo ensino médio quanto a abertura de mais cursos técnicos são medidas essenciais para que esse quadro seja revertido. Contudo, ele alerta para outros fatores que precisam ser revistos e/ou trabalhados no país, como a prática de bullying.
“A gente tem uma hipótese de que o assédio moral – o bullying – nas instituições de ensino, em especial nas escolas de nível médio, faz com que muitos estudantes se desinteressem pela área porque não se enxergam naquele lugar. Essa percepção é reforçada por estatísticas como as das olimpíadas de matemática voltadas para o ensino fundamental. Ali praticamente não existe segregação de competências e todos têm uma certa proficiência muito equivalente. Por que no final do ensino médio esse negócio desanda? Precisamos entender esses fenômenos psicológicos para dissolver esse movimento”, avalia Gallindo.
O representante do setor de TI chama a atenção, ainda, para a defasagem dos currículos dos cursos técnicos e das graduações e a necessidade de ampliação das políticas públicas de acesso à educação superior.
A formação de professores, a criação de novos cursos e a revisão dos currículos educacionais estão entre as recomendações apontadas no relatório sobre profissões emergentes na era digital.
Segundo o documento, a inserção de novas disciplinas nos currículos, alinhadas a conceitos como digitalização, novas tecnologias, economia circular, gestão ágil de projetos, trabalho em equipe e resolução de problemas, pode trazer grandes benefícios sem impactar demais a estrutura educacional existente. “Driblando a rigidez dos currículos atuais, disciplinas eletivas e transversais focadas em projetos digitais podem ser uma alternativa”, defende o texto.
De acordo com especialistas, essas questões estão, de certa forma, contempladas tanto no novo ensino médio quanto na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), instrumento que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos de vem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica. O maior entrave, contudo, estaria na educação superior.
Na visão do diretor presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), Celso Niskier, essa rigidez imposta pela regulação educacional tem atrasado o desenvolvimento e a implementação de novos cursos e metodologias formativas em diversas áreas, especialmente naquelas que demandam maior atualização e inovação.
“As metas do Plano Nacional de Educação (PNE) estão cada vez mais distantes de serem alcançadas, existe um descompasso entre a demanda e a oferta por profissionais e a educação superior segue presa a amarras regulatórias incompatíveis com o atual contexto socioeconômico e com as necessidades do mercado de trabalho. Hoje, uma instituição de educação superior que investir em um currículo moderno e inova dor pode ser penalizada pelos órgãos reguladores ou pelo resultado dos seus estudantes no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), fortemente pautado por diretrizes e conteúdos agarrados ao século passado”, diz Niskier.
Ele explica que a expectativa do setor particular de educação superior, responsável por 75% das matrículas nesse nível educacional no país, é de que o Ministério da Educação flexibilize alguns pontos e conceda maior autonomia às instituições. Assim sendo, elas poderão, inclusive, trabalhar de acordo com a realidade dos locais onde estão inseridas e não dentro de padrões estabelecidos para um país tão diverso como o Brasil. “De forma alguma somos contra a regulação. O que defendemos é que ela passe a ser uma aliada no desenvolvimento de uma educação que dialogue com as necessidades e especificidades deste século 21”.
Nessa mesma linha, Claudia Costin argumenta que o erro não é a questão regulatória em si, mas a forma como ela tem sido conduzida. “Não é um erro estabelecer padrões; eles existem em todos os países com bons sistemas educacionais. O que precisamos é de padrões mais inteligentes e flexíveis. Tem de haver algum consenso sobre o que um profissional de determinada área deve saber, mas há que existir também um espaço aberto para inovações, de como conectar os saberes que proporciono no meu curso”.
Expectativas
Apesar dos desafios, tanto o setor de tecnologia quanto especialistas em educação acreditam na capacidade do Brasil de formar e requalificar os profissionais necessários para um mercado transformado digitalmente, ainda que isso não ocorra na velocidade desejada. Esse otimismo passa por aspectos que vão desde o desempenho dos ensinos médio e profissionalizante nos últimos anos até a percepção de que gestores públicos e professores es tão comprometidos com a transformação que precisa ser feita.
Dados do último Censo da Educação Básica, realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostram que, em 2020, foram registradas 7,6 milhões de matrículas no ensino médio, número 1,1% superior ao verificado em 2019. Esse crescimento, ainda que discreto, interrompe a tendência de queda observada entre 2016 e 2019, quando houve redução de 8,2%. Ainda é incerto, contudo, o efeito da pandemia sobre o comportamento dessas matrículas nos próximos anos.
Já o presidente da Brasscom conta que tem tido interlocuções frequentes com o Ministério da Educação no sentido de reforçar as competências que precisam ser desenvolvidas nos estudantes. A instituição também se comprometeu a contribuir com a revisão das grades curriculares a cada três anos. Em outra frente, a Brasscom tem dialogado com reitores e docentes dos Institutos Federais de Educação (IFEs). “Estou muito satisfeito com a reação dos professores em relação a essa demanda. Eles estão entendendo o que precisa ser feito e o quanto essa formação implica a empregabilidade dos alunos deles”, diz Gallindo.
Otimista, Claudia Costin defende que, ao contrário do que alguns possam pensar, o ensino técnico vai ganhar força no Brasil. “Há uma demanda grande para profissões que organizam essa automação e digitalização do mundo que está em curso. Além disso, temos tido uma evolução positiva. Ao menos antes da pandemia, vínhamos, a cada ano, tendo mais concluintes no ensino médio. A situação tem melhorado, ainda que não o suficiente, especialmente para o mundo da 4ª Revolução Industrial”, aposta a especialista.
Preparação
Regulamento
Inscrição IES
Coleta de Dados
Consolidação
Publicação